“Aqui está uma prova da lusofonia viva, a forma como nos vamos aproximando, apesar de todas as diferenças”

Cantor e compositor, Paulo Flores é uma voz inconfundível na música em Angola. Com 30 anos de carreira, o cantor esteve à conversa com a Somos! sobre a dimensão da língua portuguesa, os lugares da lusofonia e de Angola, um país em transformação.

 

SOMOS! – A lusofonia é a tónica de três países onde o Paulo Flores já viveu: Angola, Brasil, Portugal, unidos em torno da língua portuguesa. Como olha para estas questões da “portugalidade”?

Paulo Flores Esta é a língua em que  consigo pensar e expressar os meus sentimentos. Desde cedo vivi esta ponte da língua, com três anos fui para Lisboa com a minha mãe e o meu pai ficou em Luanda, comecei logo aí.  Portanto, eu sempre vivi nesta ponte aérea. Estes dois mundos fizeram-me beber as influências de Ary dos Santos, Amália Rodrigues e da música tradicional de Angola e brasileira, como Chico Buarque. Foi dos poetas que me socorri bastante para conseguir encontrar um caminho para escrever e para me expressar. A língua portuguesa é esses afectos, toda essa história que nos une.

SOMOS! – Há, no entanto, palavras que assumem significados diferentes consoante os países. A palavra saudade, por exemplo, tem o mesmo  sentido?  Saudade de Portugal e saudade de Angola…

Paulo Flores – Eu acho que sim, claro. Porque, no fundo, isso tem a ver  com o amor ao lugar. Eu via isso muito nos olhos e nas músicas que as minhas avós cantavam, que muitas vezes eram em quimbundo, e perguntava-me o que queria dizer. A história era de dor, mas havia uma celebração incrível porque, às vezes, até era a dor a única coisa que as ligava e aproximava à terra. A saudade no fundo é isso, ela significa o lugar de onde nós somos e a falta que ele nos faz.

SOMOS! – É de algum lugar?

Paulo Flores – Eu sou de tantos lugares… Luanda, Lisboa, Benguela. Lisboa foi a cidade onde eu cresci e estudei, onde vejo o crescimento da lusofonia na prática. A evolução da música portuguesa, no calão e na gíria. Em Lisboa eu consigo encontrar um rapaz que usa as mesmas expressões e  palavras que são usadas num musseque em Luanda. E aqui está uma prova da lusofonia viva, a forma como nos vamos aproximando, apesar de todas as diferenças. Da expressividade que os mais jovens usam com o calão que também é usado em Angola.

SOMOS! – Sem maka

Paulo Flores – Sim, sem maka (risos). Dama, bué… existem tantas expressões que já são usadas. Eu lembro-me que quando comecei nunca me passou pela cabeça que houvesse tanta intimidade com a língua, ritmos, dança…

SOMOS! – E isso está presente no seu último disco, Kandongueiro Voador, onde mistura os referentes ritmos, o semba, a kizomba, o kuduro, o house

Paulo Flores – É isso. E falo numa linguagem essencialmente dirigida aos jovens, para lhes dizer que  estou atento e transmitir a mensagem de que são eles que, através dos sonhos, podem fazer deste mundo, um mundo melhor. Mas também por causa dos meus filhos. Através deles consegui encontrar boas referências musicais nesta nova geração de artistas e consegui encontrar várias linguagens. Em Luanda, por exemplo,  encontramos uma linguagem própria em cada bairro. Tem um kuduro no Marçal e outro diferente no Samisanga e na Boca do Lobo isso é ainda mais visível. Portanto, é muito gratificante conseguires falar também a  linguagem dos mais jovens e eles ficarem gratos por isso.

SOMOS! – Mas essa é também a missão da música.

Paulo Flores – É verdade. Neste último disco falo para os mais novos, mas associado a isso conto já com mais de 30 anos de carreira, logo os menos jovens também se identificam nesta linguagem musical. Quando comecei, e porque há pouco falámos de saudade, os meus primeiros dois discos falavam de memórias, as histórias que as minhas avós me contavam sobre Angola, há uma certa nostalgia do querer voltar, do amor à terra. Pelo meio fui viver para Angola e Brasil e a minha musicalidade foi sofrendo essas influências. Fui investindo no semba, que era um ritmo tradicional que já quase ninguém conhecia, e fruto disso vejo o neto e o avô no mesmo show. No fundo, são todas essas gerações que fazem parte daquilo que sou e que ainda procuro ser.

SOMOS! – O Paulo já afirmou, por diversas vezes, que começou a sua carreira por “sobrevivência”, quando tinha 16 anos. Olhando para a juventude actualmente, pensa que a mesma também precisa desse grito para sobreviver?

Paulo Flores – Essa sobrevivência diz respeito às minhas inseguranças, que ainda hoje me perseguem, só assim conseguimos exercitar a confiança e vontade de melhorar. Eu era muito tímido, na altura, e a música foi o veículo para que falasse sobre mim próprio, as pessoas que me rodeiam e a vida no geral. Olhando para os artistas mais novos parece-me que estão melhor preparados do que eu estava no meu tempo. Eu lembro-me que, na altura,  fazia as músicas por instinto mediante os contextos em que estava inserido. Sempre falei muito com o coração e foi incrível perceber que isso tocou tanta gente.

SOMOS! – Mas as suas composições não falam só disso, são também de intervenção num despertar de consciências.

Paulo Flores – Também acabam por ser. Em Angola vivemos tantos anos em guerra,  perda de valores… eu percebi, entretanto, que as pessoas continuavam a sorrir e a lutar por dias melhores. Essa é a inspiração da minha música, a generosidade das pessoas, dos afectos e a capacidade que as pessoas têm de se reinventar.

SOMOS! – Em Angola isso não mudou muito.

Paulo Flores – Sim e não (risos). Em Angola, há uma maior esperança dos cidadãos para com a classe política, existe uma maior humanização e maior interesse pelos habitantes. Pequenas mudanças fazem grandes diferenças.  Por exemplo, nós temos um teatro em condições, mas és capaz de encontrar umas 30 ou 40  pessoas a fazer teatro nas escolas, nas esquinas, nas províncias. Essa é  grande massa que nós temos e que me faz acreditar que iremos conseguir muito mais. Aos pouco sinto que estamos apanhar o comboio porque o progresso e a velocidade com que o mundo foi mudando muitas vezes foi deixando as pessoas pelo caminho, Mas esse acreditar da juventude deixa actualmente Angola com expectativas melhores para o nosso país.

 

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