Duas Caras: escolha mais do que acertada para inaugurar o inverno do Beergarden

O Beergarden – aquele pedaço do “Jardim dos Madjermans” – sempre foi a casa da música que a Cidade de Maputo, sempre precisou viver. O jazz – todas as quintas-feiras – e o lançamento de álbuns de hip-hop aos sábados, à mistura com outras animações, bem comprovam esse compromisso que, aliás, se estende para quase todas as artes.

No novo Beergarden, um espaço mais aconchegante e acolhedor, já beijado à Avenida Albert Luthuli, a saga continua. Para além de concertos ocasionais, como o do lançamento do álbum do rapper Trez Agah há dois meses, criou-se, mesmo para consolidar esse compromisso com a música, o Beergarden Concertos.

Trata-se de um espaço que pretende dar calor aos amantes de música nesta época de inverno e cruzar gerações ao colocar no mesmo palco praticantes de ritmos diferentes, tal como se comprovou com o espectáculo de abertura no último sábado.

No sábado do dia 4 de Maio, coube a Duas Caras inaugurar este ciclo de cinco concertos, que pretende, para além dos nossos, trazer artistas estrangeiros. O afro e o jazz – o que sempre foi a linha da casa – agora se casa com o hip-hop e seus derivados. Prova disso é que Duas Caras, no seu primeiro concerto a solo, ao vivo, esteve acompanhado maioritariamente pelos instrumentistas da mítica banda Kapa Dech. Ainda que seja um cruzamento para lá do comum, o facto do “Karaboss” ser músico, mais do que um “hip-hoper”, tornou a primeira noite desta aventura de Zé Pires singular.

E a noite no Beergarden começa a horas: 18h00. Sem muito nem menos. Desenganou-se quem julgava o contrário. Porque não é só de música que vive a arte, o espectáculo foi inaugurado por Menezes, depois de um bom compasso de espera – respeitando alguns atrasados – sob o comando do Dj Abraão.

Menezes, num tom de quem quer fazer rir, ia desferindo golpes às figuras públicas nacionais e internacionais, mas também revisitando o imaginário artístico, para não dizer literário, dos presentes sem se esquecer de cutucar as esferas política, económica e social. É mesmo isso que o stand up comedy nos reserva: uma dose de humor, claro, aliado a uma interdisciplinaridade de temas e emoções. Provou, mais uma vez, Menezes, ser um dos artistas que se assume indispensável na lista dos melhores naquilo que faz. Os aplausos, gritos e muito barulho durante a sua apresentação cimentaram o seu reconhecimento e, também, justificaram a sua escolha na abertura do espectáculo de um gigante do hip-hop moçambicano.

Foi crucial o microfone nas mãos de Menezes para o público desencostar das viaturas e tomar parte da festa; e dos outros sairem dos bares para a frente do palco ou, no mínimo, dedicarem alguma atenção às palavras bem arrumadas que já brotavam…

Ele, o Menezes, já tinha feito e muito bem o trabalho que Duas Caras teria exigido, talvez, do Hélder Leonel como Mestre de Cerimónias. Por isso, ao MC não coube muita ginástica, senão gritar pelo Duas e as palmas (ainda tímidas) do público receberem o “Rei de Moz” com a ovação merecida.

Duas Caras, logo nos primeiros instantes, mostrou para que é que foi chamado ao Beergarden. Não era para beber, claro. Subiu ao palco já “repando”. A música escolhida para inaugurar a noite foi  “Tondje Emcee”, cumprindo a sua promessa de revisitar os êxitos. Estávamos no seu single de quatro músicas, com o mesmo nome da faixa em actuação, lançado em 2012. Deste trabalho, o rapper – com o espectáculo já ao meio – exibiu “Charles”, na companhia do músico moçambicano Rui Michel.

Mas também, Duas Caras brincou com uma música do grupo Magnézia – um dos percursos do hip-hop urbano nacional – onde mostra o seu poder lírico com trocadilhos e sátiras sobre o Estado da Nação Moçambicana, aliado a outros assuntos, também bem abordados. Mesmo para mostrar que não é apenas de amor e festas que a sua poesia vive.

Mas antes, coube ao rapper apresentar a banda, como que a dar a entender “quem é quem”. Talvez (já) para se isentar de quaisquer falcatruas dos seus instrumentistas. Ora, experientes que são, parecia acostumarem-se a acompanhar um rapper. As oscilações pertinentes que a música RAP aceita foram respeitadas e mesmo quando foi preciso rumar para os ares do Rock e outras simbioses foi de uma agradável sonoridade.

O álbum da G Pro, sua grande escola – “Um passo em Frente” – não faltou no banquete. A música “SMS” é disso prova. E era (sim) o toque romântico que faltava para acalmar pelos menos as mulheres que se atreveram a ir ver um show de hip-hop. Os “manos” que arriscaram companhias femininas devem ter se consolado quando a “SMS” foi enviada aos ouvidos de todos sedentos por ouvir aquele “clássico”.

Jr. – dos New Joint –, fez parte das surpresas da noite, soltando a voz que anda bem afinada ultimamente, tal como o fez Muzila com o seu fiel saxofone. Presenças para lá de especiais e com uma marca indelével no concerto.

Hits como “Karaboss”, “Põe um Like” e “Vitz Amarelo” – estas duas últimas mais recentes – são as faixas que mais agitaram perto dos 300 seguidores de Duas Caras, um público marcadamente por amigos.

Como se repetisse o show anterior, Trez Agah juntou-se à festa e juntamente com Duas Caras partilharam o melhor que lhes une. Seria bom se 100 Paus abandonasse por um tempo a platéia para se recuar ao “País da Marrabenta” e dar-se “Um passo a Frente”.

Mas o tempo já contava os últimos centésimos e às 21h00, pontualmente, a banda escapuliu-se. Juntamente com o Blue Eyes, o “eterno” convidado com a missão de completar as rimas do Duas. Alguns reclamaram por poucas horas de show, entretanto, justifica a produção, as 14 músicas alinhadas desfilaram a classe. Disso ninguém tem de se queixar, nem mesmo eu.

Para o Zé Pires o espectáculo, sendo o primeiro, correspondeu as expectativas: “no geral, tivemos perto de 70% daquilo que é possível fazer dentro de um local como este.” O produtor do evento assume que Duas Caras foi uma escolha intencional, já que não se calcula que uma pessoa que aposta em afro ou afro-jazz (como o Zé) chame um artista de hip-hop para essa primeira digressão.

E como prometido, todo o primeiro sábado de cada mês, o Beergarden Concertos leva ao público um espectáculo que responde aos padrões internacionais de produção. Para o mês de Junho, respeitando o Dia da Crianças, o concerto fica para o dia 9 e a sugestão que se segue é, também, um praticante de hip-hop. O nome fica por anunciar.

 

* Elcídio Bila – Jornalista Cultural em vários órgãos de Comunicação Social. Criativo. Editor de livros. Activista Cultural.

Partilhe esta história, escolha a plataforma!