“Avaliação de desempenho dos hospitais públicos vai passar pelo crivo dos cidadãos”

O Ministério da Saúde (MINSA), por intermédio do seu Gabinete de Ética e Humanização, criado no ano passado, está a trabalhar num projecto que vai culminar com a criação de um concurso hospitalar – uma espécie de “top dos hospitais mais queridos” -, que vai dar aos cidadãos, por meio de uma plataforma digital que vai estar disponível nas redes sociais, a possibilidade de elegerem a unidade mais humanizada do país. O director da instituição menos votada, segundo Gervásio Púcuta, pode ser exonerado.

Há quanto tempo o Ministério da Saúde dispõe de um Gabinete de Ética e Humanização?

Este gabinete surge com a publicação do Decreto Presidencial 21/18 de 30 de Janeiro, que aprova o novo Estatuto Orgânico do Ministério da Saúde. O mesmo não existia. O que havia eram alguns trabalhos à solta, considerados como antecedentes para a criação desse gabinete.

Qual será, na prática, o papel desse gabinete?

O Gabinete de Ética e Humanização é um serviço que surge para se responsabilizar pela promoção e implementação do programa de humanização, assistência e cuidados de saúde, bem como da boa gestão dos Gabinetes de Utentes do Sistema Nacional de Saúde. Sobre essa área pesa igualmente a responsabilidade de implementação de uma cultura ética e humanizada, virada para o doente.

O que se poderá esperar deste órgão, face aos índices elevados de insatisfação manifestados todos os dias por cidadãos que acorrem às unidades hospitalares públicas? 

Com a criação desse gabinete, pretende-se melhorar o atendimento nos hospitais públicos. Havia e há gritos de reclamações de que a nossa saúde não está bem. As pessoas vão aos hospitais, mas não se sentem pessoas, porque são desprezadas, não se lhes dá a atenção que merecem. Nalguns casos, não encontram o médico, porque este foi atender outros a fazeres. Isso fez com que as pessoas perdessem a confiança nos hospitais públicos e, como consequência, deixassem de o frequentar e passassem a gastar dinheiro em clínicas privadas, para problemas de saúde que podem ser solucionados em hospitais estatais.

Como é que o Gabinete pensa resolver este dilema? 

Este Gabinete está a trabalhar com os quadros da Saúde, entre eles médicos, enfermeiros e técnicos de diagnóstico terapêutico, para se inverter a forma como se acolhe um paciente, que deve ser tratado como pessoa. Eles estão a ser capacitados para prestar mais atenção aos doentes, sobretudo a partir do acolhimento.

A falta de quadros, um dos grandes dilemas do MINSA, não vai inviabilizar esta intenção?

Essa operação vai implicar um aumento de quadros na Saúde, pois, como sabe, são poucos. Imagine um médico a fazer banco durante 48 e o outro não o vem substituir ou porque não existe? Isso cria stress. O cidadão pensa que o médico é que é mau, que não presta e que não o quer atender, quando não. Por essa razão, é necessário que se aumente o número de quadros na Saúde.

Quantos médicos seriam necessários para se prestar um melhor serviço de saúde à população?

Nós precisamos de cerca de 10 mil médicos a nível de todo o país. O que temos não é nada.

A falta de médicos é o único problema com o qual o Ministério da Saúde se bate?

Não. A par da escassez de recursos humanos, há também a necessidade de se melhorar os equipamentos. Por que é que os angolanos têm de continuar a ir à África do Sul e à Namíbia para fazer um TAC ou uma outra consulta? Se nós tivermos aqui equipamentos melhorados, não haverá necessidade de tantos angolanos irem tratar-se lá fora, até porque não há divisas para isso. Tem de haver um investimento sério a nível da Saúde, sobretudo nos equipamentos e em infra-estruturas.

As pessoas hoje passaram a optar mais pelos hospitais centrais e não pelos postos de saúde dos bairros, como acontecia há anos. O que terá falhado?

Falhou formação, informação e competências nos nossos quadros intermédios. Nem sempre o povo é culpado. Não se entende como é que um doente, que sente dor de cabeça ou febre, tem de ir logo ao Maria Pia, Américo Boavida ou ao Hospital do Prenda, que são unidades centrais, quando vive nos Ramiros ou no bairro Paraíso. Consegue ver o salto que ele dá? Não faz sentido. Mas vale sublinhar que o aumento demográfico que Luanda regista hoje também contribui para que tenhamos este quadro. A província tinha nos anos idos cerca de dois milhões de habitantes. Actualmente, esse número triplicou e não houve um aumento proporcional de quadros.

Mas, a par disso, os cidadãos alegam haver falta de condições nesses lugares, razão pela qual optam pelos hospitais centrais …

Entende-se. Eles têm razão. É necessário restituir a confiança deles na periferia. Nós temos que saber o que há lá e quem está lá, para que o cidadão volte a frequentar esses lugares. Não pode ser teoria. Precisamos de pôr médicos lá. O País vai mudar a nível da saúde. É um caminho. E essas mudanças não vão acontecer só em Luanda. Eu sou director nacional e não provincial de Luanda. Estou a falar pelo país.

Quer dizer que, com o surgimento desse gabinete, não vai haver mais casos caricatos nos hospitais públicos?

Teremos menos. Os homens são falíveis. Dizer, de forma peremptória e absoluta, que deixará de haver esses casos é perigoso. Seria falta de humildade da minha parte. Vamos é diminuir os casos. Essa diminuição tem que ser provada estatisticamente, com dados. Se pusermos as condições lá na periferia, com quadros, equipamentos e prepararmos esses quadros não só com a ciência médica, mas com o espírito humano, com noção de saúde espiritual, com noção de que o homem é a causa do seu emprego e que este homem, o doente, vale como ele vale, vamos começar a mudar as coisas. Se a periferia funcionar, não haverá razões de termos enchentes nos hospitais centrais.

Já está a ser feito alguma coisa para se inverter o quadro?

Há uma medida já aprovada. Consiste em transformar alguns postos de saúde, que é o nível mais baixo, em centros de saúde, que é o nível mais elevado em relação ao primeiro. Se um posto de saúde consegue tratar dez a 15 pessoas, um centro de saúde consegue mais e a qualidade de atendimento médico e medicamentoso neste lugar é muito melhor do que num posto de saúde.

O plano para reconquistar a confiança dos cidadãos nos hospitais públicos está a ser montado numa altura em que familiares de pacientes continuam a pernoitar defronte aos hospitais, um sinal de que não confiam nos serviços oferecidos ….

São factos e contra factos não há argumentos. Já se criou uma cultura. É falta de confiança. Estamos a girar no mesmo sítio. Mas, apresentando estímulos, que passam por melhorias palpáveis nos gastáveis, medicamentos (não é preciso a família ser chamada para ir comprar um fio de soltura ou uma garrafa de água para o seu parente tomar medicamento lá no hospital), quando isso começar a acontecer, já não será necessário as famílias passarem por essa situação. Mas, segundo uma pesquisa, muitos que pernoitam em frente aos hospitais não têm parentes lá dentro. São pessoas que chegam de viagem e, por não terem onde dormir, juntam-se aos familiares que ali pernoitam, para estarem seguros.

Às vezes, fica-se com a impressão de que não há um bom nível de comunicação entre familiares de pacientes e a direcção dos hospitais…

Essa área é minha. Estamos a começar. Nós vamos revitalizar os Gabinetes de Utentes, onde os cidadãos poderão apresentar as suas reclamações, sempre que sentirem que os seus objectivos não foram atingidos ou porque não ficaram satisfeitos com o atendimento. Estamos a criar mecanismos para que a reclamação apresentada pelos utentes não fique por aí; subam até atingir o nível do director do hospital ou mesmo da direcção do Mistério da Saúde.

Havia barreiras para que reclamações seguissem os trâmites?

Onde há homens, tudo é possível. Foi exactamente por essa razão que se criou o Gabinete de Ética e Humanização, para saber o que se passou, para as reclamações apresentadas pelos utentes não andarem. Vamos chegar as causas, descobrir qual é a barreira que existe, a fim de serem destruídas, para, doravante, elas passarem a ter razão de ser e encontrar o resultado esperado. Esse trabalho já está a ser feito.

Há a sensação de que de nada vale apresentar reclamação junto dos Gabinetes de Utentes, porque nunca sai de lá uma resposta. Pelo menos é assim que pensam os cidadãos…

Primeiro, vamos mudar o tempo da conjugação do verbo. Não é que nada vale, mas sim que nada valia. Foi noutra era, que já passou. Agora pode. Porque apresentado o problema às entidades de direito, vai fazer que evoluamos no nossos métodos de trabalho. Já imaginou ter um Gabinete de Ética e Humanização no Ministério da Saúde e o director da referida área ficar parado, sem trabalho e a ganhar salário? Seria uma injustiça social. O meu salário depende do serviço que faço para a comunidade. Então, se ele sabe que existem áreas competentes para resolver o seu problema, vai esconder-se dentro de casa porquê? Com essa postura, não estará ajudar-se a si mesmo e o Estado a evoluir. Antes não valia, mas agora vai valer.

Não teme que a má reputação deixada pelos Gabinetes de Utentes belisque a sua missão?

A árvore conhece-se pelos seus frutos. Nós temos que apresentar trabalho. Por via dele, vamos oferecer confiança aos cidadãos. O cidadão vai ser o nosso termómetro. É ele que vai dizer se as coisas mudaram ou não.

O sector que lidera está a trabalhar num projecto que vai culminar com a criação de um concurso, para eleger a unidade hospitalar mais humanizada do país. Pode falar um pouco dessa iniciativa?

(Risos) A ideia é a seguinte. Nós queremos criar uma espécie de um quadro de honra ou de um top dos hospitais mais queridos do país, em que os cidadãos vão ter a oportunidade de participar na votação, de acordo com a forma de trabalhar de cada hospital. Vamos criar um sistema de informação que vai estar disponíveis nas redes sociais. A partir dessa plataforma, vai ser possível identificar o hospital que mais pontos somou, por exemplo, na área da humanização, social, biossegurança e atendimento. Isso vai fazer com que cada hospital trabalhe para não estar mal classificado, pois nenhum director vai ficar contente ao ver a sua unidade hospitalar em último lugar. Isso até poderá provocar a exoneração dele.

Quando é que essa ideia vai passar para a prática?

Brevemente. Estamos a trabalhar para materializar a ideia o mais rápido possível.

PERFIL

Gervásio André Púcuta
Gervásio André Púcuta é um quadro da Educação emprestado à Saúde. Antes de rumar para este sector, passou pelo ex-Ministério da Assistência e Reinserção Social, onde exerceu às funções de director-adjunto do gabinete do então ministro João Baptista Kussumua, tendo mais tarde ascendido ao cargo de inspector-geral. Foi padre durante 13 anos. Diz que decidiu largar a batina, por sentir que o Estado precisava dele.
“Saí bem. Não tenho nenhum problema com a Igreja”, assegura. Como padre, trabalhou nas províncias de Cabinda, Uíge e Luanda. É licenciado em Direito e bacharel em Filosofia e em Teologia.

Entrevista: César Esteves – Jornal de Angola

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