João, o ex-guerrilheiro moçambicano que quer abrir uma moagem e dedicar-se aos netos
João Samson, 58 anos, combateu durante 18 anos pela guerrilha da Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), disfarçou armas com caniço para guarnecer Dhlakama, na Beira, e foi desmobilizado duas vezes, a última em 05 de junho.
O ex-guerrilheiro quer abrir uma moagem, servir a aldeia natal e reconciliar-se consigo próprio, ao regressar para o interior de Nhamatanda, província de Sofala, no centro de Moçambique.
João integra o grupo de cerca de 300 ex-guerrilheiros da Renamo, maior partido da oposição, da base de Savane, que beneficiou da segunda fase do processo de Desmobilização, Desarmamento e Reintegração (DDR) social, reiniciado em 04 de junho, depois de estar vários meses paralisado.
O DDR resulta do acordo de paz assinado em agosto de 2019 entre o Presidente da República, Filpe Nyusi, e o presidente da Renamo, Ossufo Momade.
João Samson foi recrutado para a guerrilha aos 19 anos, em 1981, na guerra civil moçambicana, que durou 16 anos, e foi desmobilizado pela primeira vez em 1994, pela Onumoz, a missão de paz das Nações Unidas em Moçambique.
Passou 18 anos na chamada “vida civil” e em 2012 voltou a integrar a guerrilha “insatisfeito com a condução da democracia”.
Foi recebido para treinos militares por Mariano Nhongo, atual líder de um grupo dissidente, de quem hoje discorda nos princípios para um terceiro conflito armado.
“Em 2012 tinham começado os ataques em Muxungúe e eu comecei a ser perseguido [pelas forças estatais] acusado de conspirar. Decidi responder ao chamamento do líder [Afonso Dhlakama, líder histórico da Renamo, falecido por doença em 2018] para combater novamente”, explica à Lusa.
Agora, João Samson, novamente desmobilizado, regressa à aldeia natal, Cheadeia.
Na primeira desmobilização, conta, voltou à aldeia natal com uma catana, um machado, uma enxada e um “pouco de dinheiro”.
Era o ‘kit’ de desmobilização para recomeçar a vida numa zona devastada pela guerra, sem água, energia, escolas e hospitais.
Desta vez, deram-lhe chapas de zinco, usadas como cobertura das habitações tradicionais, precárias, um conjunto de ferramentas para carpintaria e um subsídio de reintegração garantido por um ano.
Planeia comprar e montar uma moagem na aldeia onde hoje existe acesso melhorado a água, mas onde persiste a falta de infraestruturas públicas básicas, incluindo estradas.
O único centro de saúde foi saqueado e incendiado em junho, supostamente por um grupo de dissidentes filiados à autoproclamada Junta Militar da Renamo de Mariano Nhongo, que se rebelou por discordar do acordo de paz e da liderança de Ossufo Momade.
“Eu estou satisfeito por regressar a casa, sim, mas fiquei atónito ao ser informado, à chegada, que o centro de saúde acabava de ser queimado”, diz.
Teme a insegurança e tem guardado no mato o ‘kit’ de ferramentas e as chapas de zinco.
O ex-guerrilheiro sente que a “democracia continua incompleta”, mas dentro de si quer ocupar toda a atenção da velhice aos netos, coisa que não conseguiu oferecer aos seus filhos.
“Para eu esquecer tudo o que passei e me reconciliar comigo mesmo, pretendo comprar uma moagem e servir a esta população. Por outro lado, quero abrir machambas [hortas] para produzir”, diz à Lusa João Samson, que reconhece que nem tudo o que o levou à guerrilha foi alcançado.
Enquanto guerrilheiro coube-lhe a tarefa de reabastecer com armas a guarda da Renamo, que tinha ficado desguarnecida durante a invasão da residência do falecido Afonso Dhlakama, na Beira, em 09 de outubro de 2015, e cujas 16 armas foram entregues ao Governo.
Buscou as armas na base de Nhampoca e levou-as para a Beira disfarçadas num molho de caniços.
Encontrou-se com Afonso Dhlakama na praia do Estoril, numa das pontas da marginal da cidade, e por ali caminharam ao longo da costa até o desvio que os levou à Gorongosa.
Outro ex-guerrilheiro, Manuel Chaguiro, 59 anos, dos quais 18 na guerrilha, diz à Lusa que vai trocar a rifle MP12 e o fuzil de assalto AK47 por uma enxada para produção de gergelim e milho na aldeia de Cheadeia, onde foi recebido como “herói”.
Quer dedicar o resto do tempo à família.
“Eu sinto-me bem agora, naquele momento eu não vivia com a família. Sinto que vou trabalhar, livre, sem ninguém para me incomodar” calcula Manuel Chaguiro, que também foi desmobilizado duas vezes e sente que cumpriu a missão do seu instrutor ideológico, o então líder Afonso Dhlakama.
Os estreitos caminhos de pó, dispersos pelos quintais, são como labirintos na aldeia que fica no meio da savana.
No meio de um dos pátios fica a casa do chefe de família, cercado por palhotas de estacas e barro, cuja quantidade varia com o número de esposas.
A aldeia para onde João Samson e Manuel Chaguiro regressam tem um histórico militar ainda muito visível, com os moradores a primarem pela discrição, como quem cumpre disciplina militar.
O motivo é que numa zona não distante continuava ativa, até há pouco tempo, uma base militar do quinto batalhão da ex-guerrilha.
A expetativa é que no prazo de um ano o processo de DDR esteja concluído e que seja o último, o definitivo, em Moçambique.
Reportagem Lusa