Dia da Mulher Africana: “enquanto as barreiras sociais persistirem será mais difícil a mudança”
O continente africano assinalou esta segunda-feira, 31 de março, o Dia da Mulher Africana. O dia foi instituído em 1962 em Dar-es-Salaam na Tanzânia, por 14 países e oito movimentos de libertação nacional, na Conferência das Mulheres Africanas, data em que também foi criada a Organização Pan-Africana das Mulheres com o objectivo da partilha de experiências, união de esforços, designadamente para a emancipação feminina.
A efeméride foi assinalada, igualmente, em Macau numa iniciativa organizada pela Consulesa de Angola na RAEM e um grupo de amigas africanas. O evento de networking social decorreu numa unidade hoteleira da região e pretendeu comemorar o dia instituído pelas Nações Unidas.
Somos! – Não é só a 31 de julho, mas todos os dias, a mulher africana enfrenta continuadamente vários problemas, nomeadamente a violência doméstica e social, abusos sexuais, luta conta o HIV, desigualdade de género e salariais. A situação da mulher no continente africano está longe de ser o ideal, todavia o caminho percorrido tem sido positivo. Podemos começar, por exemplo, com um dos objectivos da instituição dia 31: o empoderamento da mulher africana a vários níveis como políticos, sociais, culturais entre outros. Que balanço pode ser feito nesta área?
Meury Ferreira – Sim, com certeza, o balanço é muito positivo, porque nota-se uma grande diferença desde os tempos antigos até agora, outrora as mulheres adoptavam uma postura mais submissa na sociedade e hoje verifica-se essa mudança, sobretudo, nalguns países onde a mulher, por exemplo, dedicava-se somente à casa, marido e filhos. As actualmente não têm nada a ver com o passado, lutam pela independência emocional e financeira com vista a alcançar aquilo que realmente são os seus objetivos sem depender do marido ou de homem para se conseguirem posicionar no mercado de trabalho.
Somos! – Portanto, refere-se ao grande objetivo da criação do dia 31 de Julho, que passa justamente pelo empoderamento da mulher a vários níveis, políticos, sociais, culturais, entre outros.
Maria Inês dos Santos – Exactamente, até porque para que houvesse esta independência, os países africanos tiveram que se institucionalizar. Essa é a nossa batalha, tentamos transmitir aquilo que foi definido na efeméride do dia 31 de julho.
Somos! – Não se terá, ainda, alcançado os números desejados, mas ao longo destes anos a mulher tem conseguido autonomia económica e lugares de chefia, por exemplo?
Paula Mota – No caso de São Tomé e Príncipe, eu sinto-me à vontade para falar, nota-se bastante a mudança de paradigma. Ou seja, embora a mulher tivesse tido um papel bastante predominante e de grande impacto nos movimentos de libertação, por exemplo, não foi fácil reconhecer este papel na sociedade em si. No caso específico de São Tomé, a constituição prevê ou, consagra a igualdade e a lei da família sobre a criação de respeito pela partilha das responsabilidades. Portanto, São Tomé rectificou a convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres. Não consigo ter a certeza sobre a data, mas, penso que em 2016 ou 2017, o país entrou na terceira estratégia nacional para a igualdade de género e reforçou uma lei que cria mecanismos para poder dar proteção às vítimas de violência doméstica e familiar. Foi feito um grande avanço nesse aspecto, as mulheres tiveram um grande papel no movimento de libertação, mas depois foram postas de lado. Nunca foram reconhecidas. Só muito mais tarde, no caso de São Tomé e Príncipe só em 2002 é que tivemos a primeira mulher Primeiro-Ministro. Passaram-se muitos, desde 1975, a independência, as mulheres fizeram tudo, trabalharam e lutaram imenso em tentar levantar o país e depois esse reconhecimento não foi feito. Foi um processo que levou tempo, mas também por causa mudança de paradigma, talvez a minha geração, década de 1960, deram-se os primeiros passos num prisma sociopolítico do país. Nos tempos que correm já existem mais mulheres em lugares de chefias. Temos uma primeira inspectora da polícia nacional e, agora, em 9 de Junho, a primeira reitora da universidade pública, é pouco, ainda há muito a fazer, mas eu fico muito emocionada com este progresso.
Somos! – Já em Angola….
MIS – No caso de Angola, é ligeiramente diferente. A segunda e a terceira posição de cargos com maior relevância em Angola são ocupados por mulheres. Temos a presidente da Assembleia Nacional e a Vice-Presidente da Presidência, temos também ministras governadoras provinciais e directoras nacionais. Temos muitas mulheres a ocupar cargos de direcção.
MF – Isto sem contar que, atualmente, o Parlamento é composto por 30%, o país tem evoluído bastante nesse sentido.
Somos! – A história diz-nos que as mulheres africanas tiveram um papel preponderante na luta de libertação do continente, mas que ainda travam a batalha em relação à igualdade nos mais diferentes sectores da sociedade…A luta das mulheres deve continuar em que sentido?
PM – Eu acho que a principal luta, além dos estudos, além de saber estar em sociedade é preciso perceber e consciencializar os seus direitos, isso é fundamental. Ao mesmo tempo essa consciência tem de vir acompanhada da mudança de mentalidades. Porque em África este é um problema, eu falo aqui no continente africano no seu todo e não no país A ou B. É um problema muito, muito complexo, eu acho que para se trilhar este caminho é preciso muito trabalho, algum já feito por algumas ONG em vários países africanos junto de grupos mais jovens, para perceberem que todos nós, incluindo as mulheres, temos o nosso lugar, temos o nosso papel e, portanto, é preciso fazer com que ela (a mulher) exista sem medos. Depois temos o outro lado, as dificuldades que são criadas indiretamente: às vezes aparecem programas com algumas vantagens que ficam no papel e as mulheres não têm acesso, não conseguem. Portanto, para que a mudança de mentalidade seja alcançada urge vincar mais o papel da mulher para que seja reconhecida na sociedade, é necessário trabalhar em conjunto. Quando falo em mudança de mentalidades não são só as mulheres, mas os homens também…
MF – Sim, mas para que isso aconteça, também nós mulheres temos de ser mais unidas, colaborativas, porque todos sabemos que uma pessoa sozinha não conquista fazer tudo, assim, se estivermos mais unificadas conseguimos ultrapassar barreiras culturais, entre outras. Só com esta união nós conseguiremos mais poder perante a sociedade isso com, ou sem, homens à frente.
Somos! – Essa união assenta no combate à iliteracia, por exemplo, e apostar no conhecimento académico, científico e até social para ajudar outras mulheres que estejam em situações difíceis?
MF – Precisamente isso, mas é fundamental não esquecer a parte do planeamento familiar, muitas mulheres que vivem em zonas rurais não tem a informação suficiente sobre esse tipo de apoio. Não sabem, por exemplo, que uma vez por ano podem engravidar. Por outro lado, as mulheres mais aculturadas podem transmitir conhecimentos para essas mulheres menos formadas, cuja única realidade que conhecem é ficarem em casa, cuidar dos filhos, do marido, dos campos….
MIS – Sim, mas o importante é a mulher ter conhecimento, ter educação, porque uma mulher instruída tem consciência daquilo que é o certo e o errado. A educação é um bem fundamental também…Somos! – Apesar da falta de escolas nalgumas zonas rurais.PM – O que eu tenho visto, por exemplo, nalguns apaises de língua portuguesa as ONGs vão às zonas rurais e fazem este tipo de campanhas sensibilização junto das crianças e jovens. Elas dão aulas e ensinam as crianças a escrever, embora nalguns casos sem certificação. Em, São Tome, por exemplo, há um ONG portuguesa que vai ao interior das roças dar acções de formação a meninas dos 7 aos 15 anos com o apoio da UNESCO e das ONU. Estes pequenos projectos são de grande ajuda quando as crianças não conseguem frequentar as escolas, estamos a falar de zonas muito pobres e distantes.
MF – Sim, em Angola há projetos também muitos semelhantes. As instituições fazem essas mesmas atividades e, além de entregar livros, também ajudam as crianças a escrever e a ler, é um incentivo para adquirirem hábitos de leitura.
Somos! – Infelizmente sabe-se que a mulher, no continente africano, é, ainda, de alguma forma discriminada, apesar de ter vindo a crescer no mercado de trabalho e no poder. Mas, presumo, que estas realidades não são homogéneas num continente tão vasto e com culturas e costumes fortemente enraizados nalgumas regiões, é difícil chegar a todos…
PM– O continente africano ainda vê a mulher como…enfim… o papel da mulher nalgumas regiões só serve para procriar, além do desconhecimento das campanhas do planeamento familiar, acho que o principal problema reside na Quesado cultural, tenho amigas que até vão estudar para fora e quando regressam têm 5 a 6 filhos ou mais. Acham que isto é riqueza, mas depois não conseguem dar a educação adequada…
MIS – O mais normal são as famílias, as mulheres, terem 10 a 12 filhos.
MF – A mentalidade tem evoluído ao longo dos anos. A verdade é por mais força que façamos as questões culturais em África são difíceis de combater.
Somos! – Urge mudar a imagem de África e reconhecer que o crescimento e desenvolvimento do continente deve incluir o papel da mulher?
MIS – Sim, com certeza. As mulheres têm tido muitas ideias e muitas iniciativas boas. Durante a pandeia as mulheres criaram os próprios negócios em casa, confecionavam comidas, divulgavam nas redes sociais e até providenciavam a entrega. Contudo, o seu trabalho ainda não é muito conhecido na sua totalidade, mas na área dos negócios a mulher tem contribuído muito para a economia…
PM – Eu li uma notícia, penso que foi na Euronews, que durante a pandemia houve um fórum em Bruxelas em que África era a única zona do mundo onde havia mais mulheres empresárias do que homens, mas dizia-se mais, que apesar dos empresários africanos serem mulheres, as empresas feridas por mulheres enfrentam muitos obstáculos (já aqui abordados), como a discriminação e falta de apoio financeiro. A notícia fazia ainda referência que até 2023, 80% da produção de géneros alimentares é feita por mulheres na África subsaariana.
Somos! – A secretária de Estado Angolana para os Direitos Humanos e Cidadania, Ana Celeste Januário, disse uma vez em entrevista que as mulheres africanas são:” as guardiãs do bem-estar”, perante isto o que falta ainda fazer para que este “bem-estar” seja alcançado?
MIS – O que falta é mesmo a educação, porque uma mulher educada é uma nação educada, uma mulher educa uma nação. Nós, mulheres, temos aquele olhar clínico de como estão as coisas. A mulher tem uma capacidade de resolução muito pronta e objectiva. A educação abre portas para a mulher se desenvolver e até mesmo expandir os seus negócios.
PM – Eu acrescentava a educação como factor primordial, sem dúvida, mas acompanhada de muita sensibilização. Concordo com a Inês, educação e educação, mas apostar igualmente nas campanhas de sensibilização e consciencialização das pessoas como parte integrante e “virar a mesa” quando for preciso. Somos submissas e é preciso dar a volta nas pequenas coisas do dia-a-dia. O governo tem de apostar nesta consciencialização e trabalhar com grupos de apoio na igualdade de género.
MF – Além das campanhas de sensibilização é preciso ir mais além: quebrar ou reduzir as barreiras culturais, enquanto isso estiver patente na sociedade africana, não importa a educação ou incentivo social, não importa absolutamente nada porque que as coisas vão continuar como estão, então, para isso é necessário primeiro quebrar as barreiras sociais, integrarmo-nos umas nas outras, sem discriminação, porque entre nós mulheres africanas também existe. Podemos ter muitos doutoramentos, mas enquanto as barreiras sociais persistirem será mais difícil a mudança desejada.