Na Guiné-Bissau as crianças têm uma segunda oportunidade e ela chama-se Netos de Bandim

Fotografia: gcs.gov.mo

Criado há quase 18 anos, coordenado por Ector Diogenes Cassamá, o grupo de danças tradicionais guineense Netos de Bandim procura ajudar as crianças que vivem em situação de pobreza ou risco de exclusão social, dando-lhes a oportunidade de terminarem os estudos e terem um futuro melhor. Este verão atuaram em Macau no âmbito do  “Encontro em Macau – Festival de Artes e Cultura entre a China e os Países de Língua Portuguesa, em várias zonas de Portugal e, no próximo dia 24, regressam à Guiné-Bissau.

Carel Baptista era uma criança tímida mas que gostava muito de dançar. Um dia, estava numa das ruas do seu bairro em Bissau, o de Missira, quando viu atuar um grupo de dança com o nome de outro bairro vizinho, o de Bandim. Eram os Netos de Bandim, grupo de músicas e danças tradicionais guineense, fundado e coordenado por Ector Diogenes Cassamá há quase 18 anos com a ajuda da ONG Associação dos Amigos da Criança da Guiné-Bissau (AMIC).

“Eu já os conhecia, porque às quintas-feiras ouvia na rádio as peças que teatro que eles também fazem, via-os na televisão nas atuações que tinham pelo país, mas nunca os tinha visto dançar ao vivo, fiquei fascinado”, conta ao DN o jovem de 19 anos, antes de um espetáculo que o grupo deu em Lisboa, este sábado à noite. “Fui pedir aos meus pais para me deixarem ir dançar com eles. Na altura não deixaram porque era pequeno. Para chegar ao bairro de Bandim tinha que atravessar três estradas”, explica, sublinhando que, por não ter transporte, só mais tarde integrou o projeto.

Foi durante o desfile de Carnaval, momento alto do ano em Bissau, em que o grupo aumenta sempre, pois aos membros atuais que tem no momento, hoje em dia 120, juntam-se outros antigos. Em 18 anos passaram por lá 650 pessoas. “Deixei de ser tímido. Fiz muitas amizades. Estou no grupo desde 2011. Continuei sempre a estudar. Já fiz o 12.º ano”. Atualmente a frequentar um curso de formação de professores de bioquímica na Escola Normal Superior Tchico-Té em Bissau, Carel diz que o que quer mesmo ser é médico. Quer ajudar as pessoas do seu país.

Filho único, algo invulgar no sítio de onde vem, este jovem guineense descreve-se acima de tudo como muito curioso. Graças aos Netos de Bandim fez um curso de informática e gestão de três meses, é escuteiro, foi voluntário da Cruz Vermelha, tem um curso de Saúde e Participação Comunitária e é agente de saúde comunitária no seu bairro, formado pela ONG portuguesa VIDA. Ajuda na triagem de crianças doentes entre os 0 e os cinco anos. Quando é preciso. É uma espécie de bombeiro voluntário disponível sempre que pode para responder a qualquer eventualidade.

Desde que está no grupo coordenado por Ector, Carel já visitou e atuou em Macau, Marrocos, Senegal e Portugal. . No sábado à noite esteve entre os convidados do espetáculo do cantor guineense Américo Gomes em Lisboa e este domingo à tarde participaram, em Odivelas, num espetáculo destinado sobretudo à comunidade guineense em Portugal. Alguns dos elementos do grupo, que regressa a Bissau no próximo dia 24.

“Mesmo que consiga bolsa para estudar medicina em Portugal, depois vou voltar para o meu país, porque a Guiné-Bissau precisa muito de nós”, diz Carel, acrescentando que o tempo dos golpes de Estado acabou. O último data de 2012. “Acho que já passou a turbulência, o país está a mudar, vai mudar. Nós, da nossa parte, estamos a mudar a mentalidade, a educar as pessoas com teatro e dança para abandonarem as más práticas”.

Marina Paulino Nuno Djú, de 23 anos, ela sim natural do bairro de Bandim, pensa da mesma forma. “A Guiné-Bissau esteve muito tempo acostumada aos conflitos políticos. Mas nós sempre procurámos cultivar a nossa cultura. Ela é a nossa riqueza. Os nossos políticos falam de política mas nunca estudaram política”, afirma ao DN, enquanto espera com os restantes elementos do grupo por indicações para vestir os trajes tradicionais e étnicos mais perto da hora de atuar. Por isso, diz, decidiu estudar Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Jean Piaget da Guiné-Bissau. No futuro, refere, gostava de ser embaixadora ou ministra dos Negócios Estrangeiros. Mas, se possível, sem deixar de dançar.

“A minha missão é dançar todos os dias. Ensaio das 16.00 às 18.00. Quando danço sinto alegria, muita alegria, vivacidade”. É também isso que transmite desde o primeiro ao último segundo da sua atuação com os Netos de Bandim. Graças ao grupo, do qual é hoje em dia também secretária, aprendeu muitas coisas. “Tive experiências que não imaginava, aprendi a dançar, mas não só, aprendi teatro, canto, a recitar poesia, a fazer costura. Muita coisa”. Quando aderiu ao grupo de Ector, Marina era uma das muitas crianças vendedoras ambulantes das ruas de Bissau.

“Vendia na rua com a minha mãe, pastéis, coisas que cozinhávamos em casa”, refere, acrescentando que embora frequentasse a escola, na altura, o incentivo da aposta na educação veio muito dos Netos de Bandim. “O Ector é como um pai para nós. E ele considera-nos como seus filhos. É muito mais do que só o coordenador do grupo”, sublinha esta jovem guineense, cuja irmã mais nova, de 10 anos, também se juntou ao grupo de dança.

 “Eu tenho cinco filhos, mas na verdade é como se tivesse mais 120, que são os membros atuais dos Netos. Gerir 120 Netos de Bandim significa gerir 120 conflitos [risos]. É complicado, mas com a colaboração de todos, um espírito de irmandade, conseguimos. O interesse do grupo está acima de todos os outros. Há crianças que mesmo quando adoecem em casa dos familiares pedem sempre a presença do Ector. Felizmente sempre faço questão de poder estar presente, dar afeto, acompanho alguns desde os quatro ou cinco anos. Ganhámos confiança. Não quero defraudar expectativas. Se me chamam eu procuro estar lá. Procuro seguir as crianças, mesmo as que estão longe, que já não estão no grupo. Procuro conhecer a vida familiar de cada integrante do grupo como o resto da equipa da coordenação do grupo. Aprendemos com este tipo de convivência. Quem dá também recebe”, conta ao DN Ector Diogenes Cassamá, o coordenador do grupo, a quem muitos chamam também encarregado de educação.

Desde que fundou os Netos de Bandim, incentivado pela ONG AMIC, da qual é hoje contabilista, Ector já viu passarem por ali cerca mais de seis centenas de pessoas. Com idades que podem ir dos cinco anos aos 50 e tal. Algumas estão hoje a estudar em países como Portugal, Brasil ou Senegal. Mas mantêm sempre o contacto. Como uma enorme família.

“Temos crianças órfãs, meninos de criação, vendedoras ambulantes. Foram essas categorias que fui procurar para formar o grupo, a 12 de novembro de 2000, quando a AMIC quis fazer um campanha de sensibilização dos direitos da criança. O espírito é mesmo o de resgatar as crianças da rua”, refere o coordenador, cujo telemóvel não pára de tocar.

“Algumas das crianças que integramos não vão à escola, outros vão, mas de forma deficiente, pois passam mais tempo na rua, como vendedores ambulantes, do que com os livros. Alguns, depois de estarem connosco continuam a vender, mas já com uma moderação, porque tem sempre pessoas atrás deles a incentivar, a dar sermões [risos] … Temos um seguimento personalizado a cada pessoa do grupo. Estamos a falar de crianças em situação de pobreza extrema. O objetivo era resgatar as crianças do mundo da delinquência infanto-juvenil, tentar criar um projeto de vida para cada criança”.

50% das receitas da atividade dos Netos de Bandim, refere Ector, são destinadas a ajudar as crianças que precisam de apoio na educação e de assistência médica e medicamentosa. E do governo guineense? Têm ajuda? De que tipo? “Apoio financeiro não. Só protocolar, carta para as embaixadas, para conseguir vistos. Vivemos de receitas das atividades, de fundos de sensibilização a que o grupo se candidata, de ajudas de pessoas que são padrinhos do grupo ou que doaram material escolar por exemplo, também do apoio de escolas, que dão bolsas de estudo”, enumera Ector, reiterando a aposta do grupo na internacionalização para mostrar o que o seu país tem de bonito.

“Quando falo nos espetáculos apresento sempre a parte social do projeto. Netos de Bandim é um grupo que não faz só espetáculo, faz um mega-espetáculo, é um grupo de consegue transmitir energia positiva a quem assiste. Queremos mostrar também que a Guiné-Bissau não é só um país de problemas políticos”, sublinha, tal como Carel e Marina. Nos Netos de Bandim, tal como no próprio país, misturam-se as várias etnias, como bijagó, balanta, mancanha, papel, fula, mandinga, felupe e manjaca. “Hoje em dia”, garante, “as etnias vivem e convivem no mesmo sítio sem nenhum tipo de conflito”.

Além de energia positiva e sorrisos, muitos sorrisos, nos espetáculos do grupo guineense, em que os ritmos são produzidos por instrumentos que vão dos djambés ao balafon, passando por apitos, kora ou chifre, misturam-se coreografias de danças tradicionais dessas várias etnias. O mesmo sucede com as músicas. Com os trajes. E as máscaras.

Izária Mário Sá tem 27 anos, está há 15 nos Netos de Bandim e é uma das suas coreógrafas. “Eu comecei a dançar no grupo com 12 anos. Na altura vendia na rua, amendoins, com a minha mãe. O Ector andava a fazer um recenseamento no bairro e a minha mãe disse que tinha uma menina que gostava muito de dançar. E assim foi. Nunca mais parei”, conta, sorrindo, apesar do cansaço gerado pelo acumular de várias atuações e do compasso de espera para entrar em palco.

Para chegar às coreografias, Izária e outros membros deslocam-se a várias partes da Guiné-Bissau, como Gabu ou Orango, assistem nas localidades às danças tradicionais das várias etnias e alusivas até a diferentes épocas do ano. “Há umas danças que são danças da época das chuvas e outras que são da época da colheita do arroz” Ela fotografa, filma, tira ideias, depois volta, mistura um bocadinho de tudo e, voilà, o repertório nasce. “Temos várias danças, como o kussundé, que é da etnia balanta”, refere para exemplificar, explicando, mais tarde, quando as bailarinas já estão trajadas, que as que têm saias de palha são inspiradas nas roupas da etnia bijagó e as que têm adereços de cores vivas são inspiradas na etnia felupe.

No grupo há mais mulheres do que homens, refere a coreógrafa, notando que os jovens do sexo masculino são mais introvertidos, mais tímidos, quando toca a dançar. Alguns dão mais para a percussão. E como se ensaiam pessoas com idades tão díspares como cinco anos ou 50 tal para que, no final, tudo bata certo? “Os mais pequenos são muito irrequietos. Explico-lhes por partes. Eles vão imitando. Até chegarmos lá. Tenho muita paciência. Caso contrário não conseguia”. Izária já terminou o 12.º ano e, além da coreografia, gostava de estudar e de se dedicar à área do marketing.

Igualmente focada, tal como todos os outros intervenientes desta reportagem, está Carla Helena Fonta. Também natural do bairro de Bandim, que além do mercado e do porto de pesca tem também o Estádio Nacional 24 de setembro, esta jovem de 24 anos é uma das responsáveis pelos trabalhos de teatro dos Netos de Bandim. É ela, tal como Ector, que ajudam a escrever as peças que Carel Baptista, do início deste artigo, ouve na rádio.

“Escrevo e, às vezes, também represento. Tanto na rádio como em palco. Atuamos em escolas ou centros culturais. As peças ou são únicas e duram cerca de 30 minutos ou são divididas em vários episódios de cerca de 20 minutos”, explica, num país em que a comunicação oral é de extrema importância por causa do analfabetismo.

Outro dos grandes problemas no país é a mutilação genital feminina e, por isso, esse é o tema da peça que o grupo de teatro tem atualmente no ar. “Quando escrevo as peças tenho a preocupação de que falem de problemas da vida real”. Carla explica que, no futuro, gostava de continuar a escrever peças, mas também notícias. “Já acabei o 12.º ano e estou a preparar-me para ir para a universidade. Quero estudar jornalismo. Ser jornalista. Falar. Contar histórias”. Como esta, dos Netos de Bandim, o grupo de dança que, para muitos como ela na Guiné-Bissau, é sinónimo de uma segunda oportunidade.

 Fonte: Diário de Notícias 

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