Quando os diabos andam à solta por Macau
É uma crença que remete para os primórdios da religião popular, bem antes do surgimento do Taoismo e do Budismo. No sétimo mês do calendário lunar, normalmente por volta de agosto/setembro no gregoriano, os diabos andam à solta por Macau.
A porta do inferno abre na 14ª noite da sétima Lua – este ano de 24 para 25 de agosto – dia em que se comemora a Festa dos Espíritos Esfomeados, Diabos Esfaimados ou U Lan Chit (盂蘭節, 盂兰节). Mas as festividades podem durar o sétimo mês inteiro, portanto, antes e depois da 14ª noite (em 2018, de 11 de agosto a 9 de setembro).
No Mês dos Espíritos Esfomeados ou dos Diabos à Solta encontram-se autênticos banquetes pelos passeios das ruas de Macau. Oferendas para alimentar os espíritos demoníacos errantes, mas também dos antepassados que regressam ao mundo habitado pelos vivos. “Agora são os mortos que visitam os vivos. Neste festival os vivos tratam dos espíritos, não apenas dos seus ancestrais, mas também de todos os errantes sem descanso”, refere à Somos! o historiador e mestre em Relações Interculturais, Fernando Sales Lopes.
“Os tabuleiros de comida espalhados pelas ruas, à beira dos passeios e esquinas. São tabuleiros retangulares com acepipes e guloseimas variadas que as famílias colocam na rua para os espíritos perdidos. Há fruta, rebentos de soja, amendoins, tofu (queijo de soja) e arroz”, explica Sales Lopes, realçando ainda que, por vezes, são escolhidos locais onde “houve calamidades, como incêndios ou outros acidentes que fizeram vítimas”. Nesses sítios, é colocada a comida, acendem-se pivetes e queima-se dinheiro.
“Pivetes ardem à beira dos passeios, protegendo quem passa, e um prato com patas de pato pode, muitas vezes, fazer-lhes companhia. O pato, voador anfíbio, será uma boa montada para um kuai poder voltar ao sítio de onde partiu, através da terra, do ar ou do mar. Também as gentes do mar lançam para as águas oferendas para saciarem e acalmarem os espíritos dos que no mar tiveram morte violenta ou acidental. Aos antepassados se oferecem, neste festival, frutas, porco assado, pato assado, chá e vinho”, acrescenta o historiador.
Durante um mês acendem-se também fogueiras onde são queimados papéis de seda e bambu de diferentes formatos, numa representação daquilo que o espírito iria gostar. É comum verem-se papéis em forma de casas, automóveis ou dinheiro falso que, levados pelo fumo até ao “outro mundo”, mantêm as almas entretidas para que não venham incomodar a vida dos vivos.
A morte segundo os chineses
Para os chineses a morte faz parte do processo natural, é a etapa seguinte de uma vida plena de missões, destaca a investigadora e jornalista Cecília Jorge, num dos seus artigos relacionados com o festival dos Espíritos Esfomeados, intitulado “Dar de Comer às Almas Penadas” e publicado na Revista Macau, em Agosto de 1992. E de forma a prepararem a passagem, as pessoas desta região procuram, ao longo das suas vidas, confortar os espíritos com comida e outros objetos.
“O profundo receio de uma passagem para o Além, de malefícios provocados por almas, que precisamente por terem sido forçadas a partir de forma imprevista e violenta, se tornaram nefastas, leva os chineses de Macau e Hong Kong, a cumprir as suas obrigações aqui na terra e a evitar dissabores com o Além”, observa Cecília Jorge.
Do ponto de vista chinês, e partindo do princípio que morrer “é apenas transpor uma porta que só se abre para um lado e que a vida continua nos mesmos moldes que neste”, as necessidades básicas das almas são as mesmas, ou seja, alimentação, vestuário, abrigo, transportes dinheiro e ouro…tudo em papel. “O que vale é a imagem, o faz-de-conta. E que, no início da viagem, é preciso pagar as passagens da travessia na barca do Inferno. E se a fortuna for grande e os pecados a condizer, serve também para amaciar os carcereiros das celas que as espera, na expiação dos pecados. E nunca se sabe se ele não fará jeito durante os julgamentos nas várias instâncias dos tribunais nos Infernos”, acrescenta a investigadora.
Só depois de “ponderadas as faltas cometidas na vida terrena, e descontadas as razões atenuantes, as almas são condenadas”. Podem ser submetidas a torturas e a períodos, mais ou menos longos, de encarceramento. Cumpridas as penas, voltam para a terra para reencarnar outro ser vivo.
Por todas estas razões, os vivos devem satisfazer as almas que já partiram, fazendo tudo ao seu alcance para as apaziguar, principalmente nesta altura, na véspera do décimo quinto dia da sétima lua, quando, segundo a tradição, os guardiões das profundezas abrem as portas para que as almas possam vaguear pelo mundo. Vêm esfomeadas e na sua maioria são malignas, invejosas e vingativas.
Confortar os antepassados
Apesar de todas as almas terem direito a serem confortadas pelos vivos, os ofícios religiosos e as ofertas queimadas nos templos são reservados aos espíritos dos antepassados, porque, tal como observa Sales Lopes, “também eles poderão ser almas errantes, por qualquer razão desconhecida dos vivos”. Assim, durante as festividades relacionadas com a crença nos diabos à solta, cuja origem é reivindicada tanto pelo Taoísmo como pelo Budismo, é possível ver nos templos de Macau as práticas budistas num conjunto de rituais.
Várias dezenas de grandes jarrões de papel em armações de bambu, identificados com o nome do antepassado, ficam alinhados, a par de oferendas, em estantes dos templos para depois serem queimados pelos familiares. Noutro ponto, são, por exemplo, lançadas ao fogo réplicas dos mais variados objetos para conforto do antepassado no outro lado. De acordo com Sales Lopes, as celebrações com mais tradição, nomeadamente na queima do kuai, Rei do Inferno, acontecem no templo de Fok Tak Chi, dedicado a Tou Tei, na Horta da Mitra.
Junto a alguns templos, são ainda organizados espectáculos de ópera chinesa para se entreterem os espíritos errantes. As cadeiras das primeiras filas ficam vazias para serem ocupados pelas almas que por ali vagueiam.
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Fotografias: Gonçalo Lobo Pinheiro