Todo o Natal, Luísa oferece um almoço ao bairro que lhe salvou a vida
Pouco passa da uma da tarde e uma multidão de gente começa a organizar-se em fila no Largo do Intendente, em Lisboa. Encaminham-se todos para uma mesa comprida sobre a qual repousam quatro panelões fumegantes – três de feijoada, um de arroz branco. E atrás deles está uma mulher baixinha, de pele negra, a segurar uma concha em cada mão. “Estamos prontos? Vamos lá”.
Este ano vieram mais de 400 pessoas ao almoço da Luísa. É o sétimo Natal consecutivo em que a mulher cozinha uma feijoada para os vizinhos do bairro – e este domingo (dia 16) parece ter vindo mais gente do que nunca. Algumas pessoas trouxeram bebidas, outras sobremesas. “É como se os convidasse para irem lá a casa. Só que, como não cabem todos, faz-se a festa aqui na rua”.
Não gosta de funfuns nem gaitinhas, conta a sua história sem paninhos quentes. “Nunca digo que fui prostituta ou trabalhadora sexual. Fui pu… mesmo. É a minha vida, não tenho vergonha dela. Fiz o que precisava de fazer para alimentar o meu filho.”
Luísa não foi sempre Luísa. Até aos 30 anos, chamava-se Luzia Martins. Nasceu em Luanda. Aos sete anos, os pais meteram-na no barco para Lisboa – vinha servir para casa dos padrinhos.
“Eu gostava muito de cozinhar e não gostava nada da escola. Então, nunca estudei, mas comecei a tratar da comida. E estava tudo bem.” Aos 30 anos, engravidou, mas o pai da criança não assumiu o filho.
“O meu padrinho expulsou-me de casa, quando o bebé tinha seis meses. E não tinha por onde me virar.” Nunca esquecerá a primeira vez que alugou o corpo: “Fechei os olhos com muita força e só esperava que ele não me batesse ou fugisse sem pagar. Acontecia muito.” Esteve mais de duas décadas na rua. De dia, atacava no Intendente; à noite, no Cais do Sodré.
“Tinha um quarto na rua do Benformoso, mas esse era só para mim e para o meu filho. Se arranjasse homem, levava-o a uma pensão. Pagava-se à hora; não era caro”.
O álcool ajudava a anestesiar os dramas; em drogas nunca se meteu. “Quando és pu … nunca pensas no futuro; é um dia de cada vez. Nunca me perguntei o que faria quando o corpo me falhasse.”
Em 2012, falhou mesmo: foi-lhe diagnosticado cancro da mama e teve de retirar uma mama. A carreira chegou ao fim abruptamente; não estava nos planos. E agora, o que é que Luísa ia fazer?
“O Intendente estava a mudar muito”, conta Luísa. Fizeram-se obras de requalificação, as ruas onde ninguém entrava viam-se agora de cara lavada. António Costa, então presidente da Câmara de Lisboa, acabara de mudar o seu gabinete para o Largo.
Depois, abriu um café moderno, a seguir outro. Várias associações instalavam-se com projectos sociais que abriam possibilidades a quem nunca as tinha tido. Um dia, a Marta queixou-se da falta que um almoço de Natal fazia à comunidade.
“Antigamente, a Comunidade Vida e Paz oferecia aqui uma refeição e a Luísa lamentava que a modernização do bairro tivesse posto fim a isso”, conta Marta Silva, directora do Largo Residências, uma cooperativa de projectos artísticos e sociais que tentava estabelecer a ponte entre o novo mundo que chegava ao Intendente e a comunidade que já estava estabelecida.
A ideia inicial era fazer um almoço comunitário no bairro. Cada um trazia o que podia e haviam de se juntar todos à mesa. Mas Luísa disse que sabia cozinhar – e isso muda a história toda. Em vez de trazerem comida feita, houve vizinhos que ofereceram feijão, outros carne, alguém trouxe umas couves. “Vou fazer uma feijoada”, anunciou Luísa.
Pouco tempo antes, tinha aberto a Cozinha Popular da Mouraria, um projecto comunitário de gastronomia liderado pela fotógrafa Adriana Freire. Fogão e tachos já havia – e ainda hoje é ali que Luísa cozinha o almoço de Natal para o seu bairro. Mas faltavam mesas e cadeiras para sentar tanta gente.
Aos bares onde antigamente arranjava homens, Luísa foi pedir mesas e cadeiras. Marta divulgou o almoço pela vizinhança. Que trouxessem as bebidas e os doces! E então, num domingo de Dezembro de 2012, Luísa começou a servir o almoço que trocaria as voltas à sua vida.
Nos meses seguintes, abriria portas o Café do Largo, propriedade do Largo Residências, e Marta disse-lhe que a associação precisava não só de uma cozinheira, como também de alguém que tomasse conta do balcão. Ao mesmo tempo, começou a frequentar aulas de português nas Irmãs Oblatas, uma obra religiosa que apoia mulheres nesta zona da cidade.
“Já tinha mais de 50 anos, quan-do aprendi a ler e a escrever”, conta Luísa, que tem agora 58, e isso é alegria quase tão grande como o nascimento dos netos. “E passei a ganhar um ordenado, imagina eu, com um ordenado.”
Com o contrato de trabalho, pode finalmente legalizar-se. Saiu do quarto na rua do Benformoso, alugou casa em Almada, onde vive com o filho e os netos.
“Mas venho para aqui todos os dias; trabalho no café e depois fico a conversar com as raparigas que ainda andam na vida. Dou-lhes conselhos.” Às que querem sair da rua, Luísa apresenta-as às instituições. Às que querem ficar, recorda técnicas para não correr riscos nem ficar dependente de qualquer homem.
No Café do Largo, há uma caixa para gorjetas – e é com esse dinheiro que Luísa monta o seu almoço de Natal. Com os anos, vários comerciantes começaram a contribuir com dinheiro ou comida, a Junta de Freguesia providencia mesas, vieram mais mãos ajudá-la na confecção do repasto.
Mas aquela refeição é toda dela. Há sete anos que devolve a generosidade com que os outros a trataram apurando o tempero. É que o chouriço tem de ir ao lume primeiro que tudo, as couves têm de entrar no tacho ao mesmo tempo que a carne e o feijão nem precisa de escaldar muito, há-de cozinhar com o calor do caldo.
Durante duas horas ficou ali a servir toda a gente, não largou a concha enquanto não estivesse toda a gente saciada. Depois, recebeu uma ovação dos vizinhos, 400 almas a aplaudirem-lhe a iniciativa. E ela ria-se, ria-se, ria-se. É um espectáculo bonito de se ver, a felicidade de Luísa.
Fonte: Jornal de Angola