A tabela periódica das cores de João Timane – I
Estamos no bairro do Aeroporto, um subúrbio que o seu tecto serve de pista de aviões que caem na grande cidade de Maputo. O sol baixa os calcanhares da sua luz, crianças com corcundas de livros regressam às casas. Os becos que escondem a verdadeira altura da distância cortaram em pedaços a nossa sombra. Aeroporto é o bairro onde Malangatana pintou os fantasmas mais belos dos seus sonhos de terror.
Vive, aqui, um rapaz que costura tintas. Costura tintas com os seus dedos firmes como alfinetes. Recordo-me de Saramago, em “A Caverna”, quando diz que os criadores têm como que pequenos cérebros na ponta dos dedos. O rapaz passa mais tempo no tricot que dentro dele próprio. Mastigador de tempos, alfaiate de silêncios, qualquer nome serve para chamar João Timane.
O cansaço das suas mãos gastas pelos pincéis transmitem o mesmo estado de sua alma indócil, uma alma que vê em baldes de tintas e molhos de pincéis sujos, o pretexto para estar viva. João Timane é um pintor moçambicano. Muito jovem. Já expôs dentro e fora do país. Deu caras diferentes a muitos livros moçambicanos e outros espalhados pelas bibliotecas dessa aldeia global.
Tomo-o como um poeta. Sim, um poeta que pelas tintas consegue elevar-nos ao cume de uma poesia, densa, que não cabe na gaveta da linguagem.
Trabalha no seu minúsculo atelier (mas, eu não gosto da palavra atelier). Vou sair dos parêntesis para dizer que não gosto da palavra atelier. João Timane trabalha no seu minúsculo estúdio, enquanto uma janela anã serve-lhe gotas de luz. Pinta enquanto a luz respira nervosa em todos cantos do seu estúdio.
Parece que Timane ouviu as meditações de Alberto Campo Baeza. Este arquitecto da luz uma vez segredou-nos “é quando um arquitecto descobre que a luz é o tema central da arquitectura que começa a ser um verdadeiro arquitecto”. Timane é, em parte, um arranjador da luz. Faz pássaros com as suas tintas e os deixa nessa luz que lhe chega pela sua janelinha.
Sua casa tem um quintal singular, podia cheirar a fumo de lenha que enerva uma chaleira ou podia ser chaminé de sons e cheiros que fazem os subúrbios da cidade de Maputo; seu quintal cheira a tinta. Uma tinta que não se sente pelas narinas, mas sim pelo seu palpitar em todos corpos dos quartos.
Recordo-me de um maestro, do meu bairro, que tinha um quarto que cheirava a notas. Em seu quarto a poesia lutava, constantemente, com o cheiro das notas. As notas galgavam as paredes com os insectos e apodreciam nas pernas da cama. A casa do João é mesmíssima coisa: tem mais limite de tintas que a de matéria física. Moçambique é um país; tão grande que nem dois ciclones conseguiram destruí-lo.
E é este mesmo Moçambique que se ajoelha, veste-se de cores e limpa-se o rosto com os pincéis e entra nos quadros de João Timane.
*Sérgio Simão – Jornalista e escritor em Moçambique, Maputo. Jornalista free lancer em diversos órgãos nacionais e internacionais. Escreve sobre sociedade e artes.