Guardas protegem ninhos de tartarugas em Cabo Verde como uma família a preservar
Os ovos das tartarugas ainda são invisíveis aos olhos de quem passa pela praia de São Francisco, na ilha cabo-verdiana de Santiago, mas são já dezenas e para os seus guardiões são como uma família que é preciso preservar.
O primeiro “visitante”, uma pesada tartaruga Caretta caretta, a mais frequente no arquipélago, chegou no fim de junho, mas não deixou ovos, como contou à Lusa Ilse Drescher, uma alemã conhecida como ‘Paula’ que há 14 anos fundou a Associação Fauna e Flora de São Francisco, cuja missão é manter a praia limpa e convidativa para estes animais deixarem os seus ovos.
O réptil chegou e brincou na areia, observada com a devida distância pelos guardas que, até outubro ou novembro, são agora a sombra e os protetores destes animais, cuja carne durante séculos foi consumida em Cabo Verde, uma prática agora proibida por lei.
A Caretta caretta, também conhecida por tartaruga comum, encontra-se em perigo de extinção e esta é uma das razões que leva todos os anos dezenas de voluntários a passarem noites nas várias praias das ilhas de Cabo Verde, zelando pela integridade dos animais e assegurando que os seus ninhos estão em segurança.
Na praia de São Francisco, um cercado azul limita a zona onde estão enterrados seis ninhos de tartaruga.
Os ovos, perto de 60 a 70 por ninho, foram postos pelas tartarugas no areal, mas logo retirados pelos voluntários da associação para uma zona protegida.
Para tal, os conservadores escavaram um buraco o mais semelhante possível ao produzido pela tartaruga que, enquanto está a pôr os ovos, permanece imobilizada e indiferente ao que se passa em seu redor.
Uma placa de madeira enumera os ninhos e identifica-os temporalmente, esperando os elementos da Associação Fauna e Flora de São Francisco que esta época seja tão feliz como a anterior, que ultrapassou todas as expectativas, com mais de 109 mil ninhos em Cabo Verde.
“O resultado [na praia de São Francisco] foi de 210 ninhos, muito mais do que antigamente, que era 60, 61. Não temos uma explicação. Ainda ninguém sabe porquê. Este ano, possivelmente teremos o mesmo resultado”, disse ‘Paula’, ostentando um colar em forma de tartaruga.
E num português com sotaque germânico reconhece evoluções muito positivas na proteção desta espécie, com a qual teve o primeiro contacto há 14 anos, ficando para sempre deslumbrada com as características deste animal, sobretudo a sua resiliência.
“É extremamente bom ver como as coisas mudam”, disse, sublinhando a importância da criminalização do consumo de carne de tartaruga em Cabo Verde, que aconteceu em 2017.
Para Arlindo Bento, vice-presidente da Associação Fauna e Flora da Praia São Francisco, estes animais ainda hoje são perseguidos por causa da sua carne e, apesar da lei, reconhece que as coisas não vão mudar de um dia para o outro, daí a necessidade de os proteger.
“Antigamente não era proibido. Os pescadores pescavam as tartarugas e depois comiam-nas e ficou esse hábito de comer. Não vão desistir com muita facilidade”, disse.
Por isso, é com uma indisfarçável satisfação que faz parte do grupo de guardas que vigia a praia “para proteger as tartarugas, porque há pessoas que as querem atacar para as comer”.
Este ano os guardas contam com uma tenda oferecida por uma associação alemã e, por esta razão, estão mais protegidos do vento que é forte naquela zona da cidade da Praia.
Todas as noites são mobilizados quatro guardas. Dois dormem enquanto os outros dois percorrem a praia, trocando ao fim de umas horas.
Arlindo Bento diz que não tem medo, embora reconheça que ao fim de semana “é mais perigoso”, porque chegam muitas pessoas que às vezes se tornam agressivas. Também a estas, tenta explicar a sua missão e passar a mensagem da necessidade de conservar as tartarugas em Cabo Verde.
Arlindo Bento fica sem palavras na hora de descrever o que sente quando avista as tartarugas e as observa “a passear na praia, a brincar na areia”.
Enquanto isso, os guardas ficam perto delas e esperam que, seguras, regressem ao mar.
Quando os animais chegam para pôr ovos, o trabalho é maior, mas também maior a compensação.
E quando chega o dia em que dos ovos saem as “tartaruguinhas”, então é a alegria total: “Quando nascem e vão para o mar ficamos contentes, como se fossem família”.
Muitas vezes os guardas têm de dar uma ajudinha, pois os recém-nascidos, ainda sem a proteção de uma carapaça, como terão mais tarde as sobreviventes, ficam perdidos e seguem direções erradas, atrás de luzes que não as da lua, que com o seu reflexo ilumina o mar.
Mas nem aí os voluntários descansam totalmente, como explicou Arlindo Bento.
“Os perigos continuam no mar, porque as tartaruguinhas enfrentam muitos perigos”, disse, recordando que as estatísticas indicam que, em mil, apenas uma chegará a adulta.
E é no mar que se encontra outra das grandes ameaças às tartarugas: o plástico.
Junto à praia de São Francisco existe um espaço com árvores muito utilizado para festas, acampamentos ou simples piqueniques. O problema é que nem todos os convivas têm a preocupação de guardar o lixo num saco fechado e, à menor falta de cuidado, este é levado pelo vento forte para o mar, mesmo ali ao lado.
Ainda assim, ‘Paula’ diz que as pessoas hoje em dia já estão muito mais sensibilizadas e que a maioria já utiliza os contentores que a Câmara Municipal da Praia colocou na zona.
A luta de ‘Paula’ dirige-se agora contra as festas e os festivais que, de tempo a tempo, são anunciados para este local.
Além da luz e do barulho que ameaça as tartarugas, muito do lixo que fica no fim destes eventos vai parar ao mar e, nessa altura, será ele a ameaçar as tartarugas que conseguirem chegar à água.
Reportagem: Lusa