Português deve aproveitar fenómeno do multilinguismo para crescer
O linguista brasileiro Gilvan Müller de Oliveira defendeu que a língua portuguesa deve saber aproveitar as oportunidades decorrentes do multilinguismo, um forte instrumento económico, histórico e de humanização, e que é “a verdadeira língua do século XXI”.
Fenómeno atribuído à globalização e um elemento no radar da UNESCO, o multilinguismo é “uma oportunidade para o português”, mas também “para todas as línguas”, destacou o antigo diretor executivo do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), instituição da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) com sede em Cabo Verde, em entrevista à Lusa em Macau.
“O que nós temos hoje é um contexto em que não só uma língua cresce em detrimento de outras, mas todo um conjunto de línguas cresce”, afirmou o académico, à margem do arranque do II Seminário da Cátedra UNESCO em Políticas Linguísticas para o Multilinguismo, que decorre até quinta-feira na Universidade de Macau.
Gilvan Oliveira coordena esta Cátedra a partir de Florianópolis, no estado brasileiro de Santa Catarina. O “projeto jovem”, mas “em fase de expansão” envolve 22 universidades em 13 países, dando destaque aos blocos lusófono e dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), estes últimos “países altamente multilingues, com modelos de gestão civilizacional e linguística muito diferentes entre si”.
Sobre o uso do português nos países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP), o linguista considerou estar “a avançar rapidamente”, dando como exemplo de sucesso o caso de Moçambique, onde existe hoje um sistema de escolas bilingues “que fazem com que o aluno compartilhe o português e uma outra língua moçambicana”.
“O caso de Moçambique é um caso notório. Havia em Moçambique pouco mais de 11% de falantes de português no momento da independência, e agora já são mais de 55% de falantes, quer dizer que o Estado nacional moçambicano, tomando para si a tarefa de ensinar português e de criar um sistema educacional e um sistema de transmissão radiofónica e televisiva, contribuiu para uma rápida expansão da língua”, referiu.
Neste sentido, frisou, “a responsabilidade do Estado no ensino do português e da organização dos espaços e da circulação da língua é uma peça fundamental para o crescimento da língua”.
Além disso, a língua portuguesa beneficia de uma característica especial: “Não há dois países de língua portuguesa que fazem fronteira, cada país é uma ‘ilha’, cercada por vizinhos que falam outras línguas, e isso é extremamente positivo para a expansão da língua”, salientou.
Na África do Sul, por exemplo, o português é hoje uma das línguas opcionais para os exames secundários e “onde se tem expandido de forma muito firme, graças e sobretudo ao papel que Moçambique desempenha na vizinhança, e crescentemente Angola desempenha na vizinhança da Namíbia, como o Brasil desempenha nos seus vizinhos falantes de espanhol, e mesmo Portugal, com todos os projetos do português na Extremadura [espanhola]”, disse.
“Esses países provocam o crescimento do uso da língua internamente, mas também para fora, crescentemente expandido as fronteiras de circulação, para fora e para dentro, na receção à migração”, apontou.
O académico considera que a língua de Camões tem aproveitado oportunidades decorrentes do contexto global do multilinguismo, expandindo-se “em vários contextos”, mas que é preciso abandonar a “mentalidade de uma época passada” e pensar no português como uma língua internacional.
“Ainda pensamos muito no português como uma língua nacional, há dificuldades de ver o português como uma língua internacional. Há dificuldades de considerar, por exemplo, uma responsabilidade crescente para o IILP [Instituto Internacional da Língua Portuguesa] na construção desta comunidade internacional que compartilha uma língua, que ao mesmo tempo é compartilhada com outras línguas”, apontou.
Assim, e sublinhando que o multilinguismo é, a par da tradução eletrónica, “a verdadeira língua do século XXI”, o professor defende que a língua portuguesa tem muito a ganhar com a participação neste fenómeno.
“Quanto mais o português puder participar neste multilinguismo, e puder ser uma opção para falantes de vários países, e ao mesmo tempo se nós pudermos também falar outras línguas, só temos a ganhar economicamente”, considerou.
“Evidentemente, cresce o valor económico do português à medida que a língua está conectada com outas línguas e quando o número de bilingues e trilingues cresce, porque é isso que faz a incorporação de ideias, projetos, narrativas históricas e literárias, ou a tradução”, acrescentou.
No entanto, não é só o valor económico que cresce, vincou, como também o valor humano e histórico. Partindo do exemplo de um instrumento desenvolvido pelas universidades que integram a Cátedra, e a partir do qual uma tese de doutoramento em indonésio foi sumarizada e traduzida para português, Oliveira sublinhou a vantagem das produções intelectuais não passarem por uma só língua.
“À medida que podemos usar as ideias deles e eles as nossas, aumenta o valor económico, o valor humano, o valor histórico, como ponte entre línguas, e nesse sentido a Cátedra tem sido uma oportunidade para a recuperação dessas memórias”, disse.
As Cátedras UNESCO são projetos de quatro anos sujeitos a avaliação, que podem ser renovadas indefinidamente “se produzirem informação relevante para que os estados membros atuem”, explicou.
A Cátedra UNESCO em Políticas Linguísticas para o Multilinguismo (2018-2022) foi estabelecida em fevereiro do ano passado e tem como instituição responsável a Universidade Federal de Santa Catarina, no Brasil.
Fonte: Lusa