Património imaterial em Malaca identificado por portugueses
Bruno Rego e Joana Bastos, dois bolseiros Fernão Mendes Pinto, numa pareceria entre o Camões, I.P. e da Associação Cultural Coração em Malaca, ONGD, estiveram um ano e dois meses em Malaca (Malásia) a desenvolver um mapeamento cultural que abrangesse a dimensão material e imaterial do património lusodescendente de Malaca. Em conversa com a Somos! Bruno Rego explicou que “neste momento encontra-se em desenvolvimento a catalogação do espólio e do arquivo fotográfico do Portuguese Settlement Heritage Museum, que não só contribuirá para a preservação da memória, assim como acrescentará um recurso para a produção e análise científica”.
SOMOS! – O que está a ser feito neste sentido, ou seja, na sua preservação?
Bruno Rego – Antes de mais, o trabalho fundamental que tem sido desenvolvido por elementos da comunidade, mais concretamente por Joseph Santa Maria, Martin Theseira, Sara Santa Maria, Marina Danker, entre outros. Todos eles, através de diversas e distintas ações, têm promovido o património que lhes é pertença e assim contribuído para a transmissão às gerações vindouras e para o reconhecimento por parte das entidades externas. Em paralelo, também o trabalho desenvolvido por diversos investigadores e pelos bolseiros Fernão Mendes Pinto, através do Camões, I.P. e da Associação Cultural Coração em Malaca, ONGD, tem sido fundamental.
SOMOS! – Fazendo história, Malaca foi conquistada pelos portugueses em 1511, que património é que ainda existe, passados tantos anos?
Bruno Rego – Quando falamos de património temos de ter presente não só a sua dimensão material e imaterial, mas também a criação contemporânea. De facto, embora também reflita a construção material, a identidade cultural portuguesa de Malaca expressa-se através da imaterialidade das expressões orais, tradições, artes e dos conhecimentos relacionados com o meio, mas também por via da criação contemporânea de uma comunidade que partilha e expressa um património que é singular no tempo e no espaço e que procura salvaguardar para as gerações futuras. Composições como Jinkli Nona transparecem ritmos de um Branyo há muito escutado e celebrações como o Intrudu (Entrudo) readaptam-se nunca esquecendo a importância dos banhos de água no começo de uma nova época de renovação que se estende 7 semanas até à Páscoa.
SOMOS! – Mas essas expressões orais são no dialeto local. O português é pouco falado.
Bruno Rego – O crioulo de Malaca, conhecido também por Malacca Portuguese, é ainda extensivamente falado em Malaca, nomeadamente pela comunidade que reside no Bairro Português, onde, devido à fixação num só local, estão ainda reunidas as condições sociais e culturais para que não seja somente falado num âmbito familiar ou num núcleo restrito, mas sim num contexto comunitário. Acontece que o dialeto tem vindo a ser perdido devido à predominância do inglês em muitas casas, sobretudo entre os mais jovens, mas, porém, ainda é falado por um grande número de habitantes. A sua preservação e a manutenção do meio onde este é difundido é essencial para que a memória das expressões e tradições orais alcance o futuro.
SOMOS! – Como é que os malaios olham para os portugueses e para a história de 100 anos de ocupação?
Bruno Rego – A comunidade portuguesa de Malaca é uma minoria que surge enquadrada num amplo panorama cultural que compõe a Malásia. Uma minoria católica que está inserida num país que tende maioritariamente para o Islão, embora outras religiões e ritos sejam praticados e admitidos. Ao estar inserida no Estado de Malaca, um dos mais multiculturais, e sendo Malaca uma cidade distinguida em 2008 pela UNESCO como Historical City, é uma comunidade com uma presença histórica e já com algum reconhecimento Federal e Estadual, embora seja essencial para a sua salvaguarda que o seu meio e legado intangível sejam também reconhecidos pelas entidades nacionais e internacionais. Nesse plano, a 2ª Conferência das Comunidades Portuguesas na Ásia, em 2019, foi fundamental não só para o fortalecimento dos laços entre as comunidades lusodescendentes na Ásia, como também para o reconhecimento da importância do desenvolvimento de um Consulado Honorário de Portugal sediado em Malaca através de Sua Excelência o Secretário de Estado das Comunidades Portuguesas José Luís Carneiro.
SOMOS! – Mas nem só de português se escreve a história, que aconteceu aos portugueses depois da invasão britânica?
Bruno Rego – A presença britânica foi expressiva na Malásia e de longa duração quando comparada com outros períodos históricos, nomeadamente o português. Importa realçar que durante o período britânico, no início do século XX, através da diplomacia dos padres Pierre François e Álvaro Coroado, o Bairro Português de Malaca, também conhecido por alguns por Padri Sa Chang (Terra do Padre), foi construído para albergar uma comunidade maioritariamente piscatória e de identidade portuguesa. Um marco que criou condições essenciais para a preservação da identidade lusodescendente até aos dias de hoje.
SOMOS! – Falamos ainda da existência de portugueses a residir em Malaca?
Bruno Rego – Existem alguns, mas não muitos, cidadãos portugueses a viverem na Malásia, nomeadamente em Kuala Lumpur. Em Malaca são quase inexistentes e os portugueses que temos o privilégio de encontrar são maioritariamente turistas que, com espanto ou curiosidade, visitam o Bairro Português.
SOMOS! – Fale-me um pouco do Bairro Português e de Malaca em si.
Bruno Rego – O Bairro Português de Malaca, localizado em Ujong Pasir, é um bairro composto por uma comunidade de cerca de 1300 habitantes. Nele residem habitante que se reconhecem como portugueses de Malaca. No seu interior são visíveis não só as casas térreas ou de dois andares onde as famílias habitam, como também, na área central, um conjunto de restaurantes onde é possível experienciar a gastronomia local, como o famoso prato português Curry Devil. Também no centro, no Medan Portugis (Portuguese Square), é possível encontrar o Portuguese Settlement Heritage Museum, uma pequena capela, alguns restaurantes, o recente mural elaborado pela Casa ao Lado e o Espaço Korsang, pertencente à delegação da Associação Cultural Coração em Malaca, ONGD. Por outro lado, Malaca é uma cidade histórica e multicultural onde a comunidade portuguesa coabita com outras realidades multiculturais. No centro da cidade é possível observar diversos vestígios arqueológicos que apontam para diversas épocas de ocupação e cronologias. Malaca é desde de 2008 reconhecida como Património Mundial pela UNESCO.
SOMOS! – Parece-lhe que esse património tende a desaparecer?
Bruno Rego – Se olharmos para as diversas comunidades portuguesas na Ásia poderemos observar que o caso de Malaca é praticamente singular. Uma minoria num mundo cada vez mais global, perante interesses e fenómenos locais e nacionais que poderão prevalecer, poderá ver elementos identitários cada vez mais distantes na sua memória. Para isso será necessária uma cultura de paz baseada na cooperação e no respeito pela identidade e pela vida.
As relações
A relação de Portugal com Malaca remonta a 1509 quando Diogo Lopes Sequeira, enviado do Rei D. Manuel, aportou em Malaca para estabelecer relações e dois anos mais tarde Afonso de Albuquerque desembarcou em Malaca, demoliu a Grande Mesquita, e levantou no local uma fortaleza que seria um importante entreposto comercial.
Na mesma altura, surge o crioulo de matriz portuguesa, Kristang, uma língua agora ameaçada de extinção, que emprega a maior parte do seu vocabulário do português, mas a sua estrutura gramatical é semelhante ao malaio e extrai as suas influências dos dialetos chinês e indiano.
Apesar de estar em extinção, esta língua é ainda falada regularmente um pouco por todo o bairro português de Malaca, cidade descrita pelo segundo capitão, Jorge de Albuquerque, no início do século XVI, como não tendo “nada de seu, mas que tem todas as coisas que há no mundo”.
Depois de 100 anos de domínio português, a cidade foi tomada pelos holandeses, depois pelos ingleses, até à independência da Malásia, em 1957. (Lusa)