A viagem de três Mulheres

A ideia que as mulheres escrevem para o público feminino, como se se tratasse de uma escrita menor ou menos universal, constitui apenas refúgio daqueles que não querem descobrir a produção das escritoras do presente e do passado. As mulheres ainda se confrontam com perspetivas redutoras das suas obras que é preciso desmistificar.

Esta pequena reflexão constitui uma viagem pelos livros, pela literatura e pela leitura, neste mês que retoma a tradição da Feira do Livro de Lisboa e que traz para os noticiários televisivos autores, editores e leitores. Findo este período de “festa do livro”, desvanece o entusiasmo por um dos mais belos exercícios da mente humana: a viagem através do imaginário.

Escolhi três livros de autoras de nacionalidades diferentes, duas contemporâneas e uma do século passado, que escreveram sob formatos diversos e servindo também objetivos e públicos diversos. O que têm em comum? Provavelmente pouco, a não ser a questão de partilha do mesmo género e a audácia da escrita. Contudo, as três comprovam que a escrita feminina pode ser universal, tratar de temas que perpassam a humanidade, sem para isso abdicar da sua perspetiva individual que inclui a sua condição de género.

A ideia que as mulheres escrevem para o público feminino, como se se tratasse de uma escrita menor ou menos universal, constitui apenas refúgio daqueles que não querem descobrir a produção das escritoras do presente e do passado. Enfrentando dificuldades enormes que lhes cerceavam a entrada no mercado da produção artística ou científica, as mulheres contemporâneas ainda se confrontam, inúmeras vezes, com perspetivas redutoras das suas obras que é preciso desmistificar.

As mulheres não são mais nem menos aptas para um tipo de produção ou mercado criativo. O que as diferencia é o facto de, em geral, lidarem com uma maior desconfiança aquando da sua entrada no mercado profissional nestas áreas.

Curiosamente, trabalhos recentes de investigação demonstram que as mulheres foram produtivas nas diversas áreas criativas, mas tiveram menos possibilidades de apresentar o fruto do seu trabalho publicamente. Algumas vezes, as que conseguiram furar este bloqueio usaram pseudónimos masculinos que as impediam de aparecer em público.

Nos casos escolhidos, as autoras escrevem sob seu nome próprio, num tempo em que já não é aceitável ter leituras redutoras quanto às suas obras. Escolhi An Yu, escritora chinesa, Dora Gago, autora portuguesa e Ruth Benedict, investigadora norte-americana.

A ficção dos sentimentos

An Yu é a autora do livro intitulado “Porco Assado”, editado em 2023 pela Quetzal. Esta autora, nascida em Pequim, passou parte da sua vida na Europa e nos Estados Unidos, onde estudou e trabalhou, vivendo hoje em Hong Kong. Todavia, o seu livro centra-se entre Pequim e o Tibete, entre viagens imaginárias e viagens reais, entre o passado e o presente. Porquê Porco Assado? A resposta está no final do livro, numa das muitas viagens em que acompanhamos a personagem principal, ajudados pelo narrador ou narradora, onde percorremos o tempo e paramos na infância desta mulher ainda jovem, mas com uma vida preenchida por eventos comuns que dão uma estória.

Através da pena de An Yu, somos apresentados à China contemporânea, repleta de mulheres e homens com constrangimentos, anseios e histórias pessoais intricadas num processo complexo da construção da história do país, que se tornou a segunda economia do mundo. A viagem que a escritora nos propõe tem uma dimensão sentimental e psicológica assinaláveis. Percorremos os caminhos dos seus desejos, medos e concretizações.

O livro inicia-se com a morte do marido de uma jovem mulher, por suicídio, que a deixa sem filhos e com a necessidade de retomar as rédeas do seu destino. É esta personagem que nos conduz nas contradições de uma sociedade que enriqueceu rapidamente, mas também nos seus encantos quase místicos que nos podem ajudar a reencontrar a paz. Esta é uma viagem individual, introspetiva, mas universal. Expões fragilidades, mas constrói caminhos para a sua interpretação. Talvez o contrário que se esperasse de uma escritora chinesa a refletir sobre a sua sociedade. Mas An Yu tem algumas especificidades.

Escreve em inglês em vez da sua língua materna, o que nos faz depreender que pretende alcançar um público mais vasto do que o chinês. O seu leitor típico será, sobretudo, urbano, estrangeiro ou chinês. An Yu não se perde em explicações típicas do livro dirigido a estrangeiros, mas tende a explicitar bem o contexto rural e a realçar as diferenças entre estes mundos, muito patentes ainda na sociedade chinesa.

An Yu escreve um livro intimista que nos introduz e leva a viajar por uma China um tanto diferente das dos noticiários, mostrando a universalidade dos sentimentos de perda e da necessidade de reabilitação emocional de cada indivíduo, sobretudo, pela pacificação com o seu passado. Uma excelente leitura, quase de realismo mágico, que vale a pena empreender para melhor perceber as subtilizas de uma pessoa chinesa contemporânea. Trata-se, pois, de encetar uma viagem através de uma ficção que navega em torno de sentimentos.

Entre a América Latina e a China, fica a Europa

Dora Gago escreve “Palavras Nómadas”, editado pela Húmus, em 2023. A escritora transporta-nos nas suas crónicas por espaços, aventuras, percalços e geografias diversas. Com a autora visitamos o Uruguai, estudamos em Évora, frequentamos um curso nos Estados Unidos e vivemos em Macau.

A par desta viagem por espaços, em tempos diferentes (o livro abarca, pelo menos 20 anos de vivências da autora), a escritora leva-nos a experimentar a alteridade, o ser outro em terra alheia. Da ida ao cabeleireiro às compras do supermercado, essas coisas miudinhas do dia a dia, constrói-se uma perspetiva da identidade coletiva e individual, através dos seus olhos.

As crónicas, escritas em jeito de diálogo com o leitor, comunicam entre si. Não raro aparecem referências a momentos que, depois, serão relatados. Nesse sentido, os diversos textos ganham uma unidade que vai para além de terem sido apenas experiências de Dora Gago.

Habilmente, estas crónicas, que podem ser entendidas se lidas individualmente, constituem também um diálogo que permite ver o livro como um todo. É nesse todo que se encontram as variações de emoção e sensibilidade relativamente a cada momento. Nesse sentido, a escrita de Dora Gago apresenta uma fluidez extraordinária que fica vertida na ideia de o leitor rececionar o todo da vivência da autora, mesmo que esta possa ser parcial.

As situações relatadas pela autora são as suas, é certo, mas muito parecidas com as que qualquer viajante se confronta. Quantos de nós não chegaram e aperceberam-se que a bagagem tinha ido para outro destino? Quantos de nós, exaustos de uma viagem longa, não conseguimos sequer explicar o destino ao taxista que nos vai transporta?

Mas o aspeto mais precioso da escrita de Dora Gago é o humor com que descreve as situações e suas reações. Embora a linguagem seja trabalhada e a situação por vezes caricata, é o tom que a autora lhe concede que nos arranca esse sorriso e esse sentimento de identificação com o momento ou com aquele evento em particular.

Embora seja um olhar europeu, é um olhar de viajante que vai partilhando a sua experiência e em que, talvez, seja o sentimento de alteridade aquele que mais atravessa o livro. As crónicas curtas permitem uma leitura ao gosto do leitor e, também, adaptada a essa vida de corrida a que autora se refere. Momentos casuísticos são tornados momentos de fruição literária e esse é o “segredo” deste produto literário. Afinal, como diz a escritora, “a arte da escrita” resulta também da “erupção da novidade, da surpresa e do insólito”. Cabe ao leitor participar dessa descoberta de insólito.

Ler o outro em tempos de guerra

A terminar este roteiro de viagem pela escrita feminina, Ruth Benedict, autora do livro “O Crisântemo e a Espada: Padrões da Cultura Japonesa”, editado pela Guerra e Paz em 2022. Esta edição ganha particular interesse dado o contexto em que vivemos, de guerra na Europa e aumento da competição internacional. A antropóloga destaca-se desde logo por ter sido a primeira mulher professora titular na Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Columbia e presidente do departamento de Antropologia da mesma universidade.

Este livro resulta de uma pesquisa encomendada pelo estado norte-americano à investigadora, que teria de perceber não só o modo de vida, mas como a cultura e a sociedade japonesas levavam o indivíduo à ação. Por estar em tempo de guerra e o Japão ter sido mesmo o maior inimigo dos Estados Unidos da América na Segunda Guerra Mundial, a antropóloga não pôde desenvolver trabalho de campo no país e cultura estudados. Supriu esta impossibilidade com o estudo das comunidades japonesas residentes em território americano.

Ruth Benedict consegue expor de forma percetível a um leigo nas matérias das ciências socais toda a organização sociopolítica japonesa. O seu público não está na universidade. O seu leitor alvo são os decisores políticos e a sociedade norte-americanos.

Nesse sentido, a autora simplifica a linguagem, sem perder o rigor, e explica a evolução desta sociedade, a todos os níveis exótica para o americano comum. Enuncia, então, um dos que deviam ser os princípios das ciências sociais: explicar o mundo e as duas comunidades e sociedade para que a sua compreensão levasse a decisões informadas.

Benedict não expressa nenhuma espécie de rejeição ou antagonismo à cultura japonesa, embora o seu país natal combatesse esse país. Apenas explica como até ali se chegou e quais os fundamentos para aquela ação.

Ainda hoje, este livro ilustra bem a cultura japonesa e, na sua base, está também a explicação para o sucesso da receção dos Estados Unidos naquele país, depois de estes terem infligido os ataques que determinaram a rendição do Japão. Está, decerto, em boa parte do trabalho de Ruth Benedict a decisão americana de manter o statu quo do Imperador japonês e introduzir uma modernização progressiva que, primeiro, teve impacto na economia e, depois, foi tendo impacto na política. Conhecer bem os atores em jogo é um papel da ciência que deve ser aproveitado para uma decisão informado que, nos tempos que decorrem, parece escassear.

Três viagens

Eis três viagens por mundos diversos em cronologias diferentes, realizadas por mulheres também elas com percursos muito díspares. Em comum, o interesse pela natureza humana e pela sua conversão para a escrita. Interesses universais, dependendo apenas das características individuais de cada um.

Estas três autoras contribuem para essa perspetiva única de que este exercício depende apenas do livro, do escritor e do leitor, se bem que, de permeio, há algo chamado mercado editorial, mas isso vai para além das questões da universalidade dos temas e do género. Boas leituras.

*Artigo publicado originalmente no Jornal de Negócios 

Partilhe esta história, escolha a plataforma!