Torna a torna de torna
Por esta altura já vai alto e ainda se lhe soma a bandeira.
O milho já está alto, viçoso e, prevê-se boa colheita, assim os javalis não façam festins.
Já não se monda o milho, não como se mondava: sacho na mão, mãos ao dispor, muitos agachamentos e nenhuma erva matreira por entre as canas do milho, que crescia nas terras baixas. Também já não se descamisa (há outros termos em outras geografias), que é como quem diz: não se tira a roupa à maçaroca do milho ao mesmo tempo que se fazem figas para aparecer milho rei que dá direito a uma catrafada de beijinhos distribuídos pelos/as presentes. Agora já há máquinas, e não há que demonizá-las, libertaram mãos e cérebros para outras tarefas. As lides do campo não obrigam a tarefas conjuntas, a bailaricos depois de jornadas de 16, ou mais, horas ao frio ou ao calor impiedoso de Julho e Agosto.
Já não se vai de tornas.
As tornas são as agendas do Google do antigamente, antes de haver Google e se partilharem ‘eventos’. Vá se lá imaginar como, mas, há muitos anos, já aquela gente do campo organizava eventos partilhados que se repetiam ciclicamente e em que os intervenientes já sabiam o horário e qual o cariz da actividade a ser desenvolvida.
Mais do que uma agenda, as tornas eram sistemas de entreajuda. Se eu hoje ia ajudar a vizinha do fundo da rua, amanhã vinha ela ajudar-me e depois iríamos as duas ao meu compadre, que afinal até é vizinho dela também.
As tarefas agrícolas, muitas delas com validade muito limitada, eram realizadas por grandes grupos e repetidas por vários dias, para que o centeio não apodrecesse no campo ou as uvas ainda fizessem vinho em vez de virarem passas bolorentas.
É curioso o uso da palavra Torna, porque descreve um movimento circular, faz e torna a fazer, vai e torna a vir. Um torno permite o trabalho em 360°, as Tornas permitiam o trabalho a 100%. Na época das malhas, ainda o mangual batia ritmadamente na eira, o tempo era crucial, não se podia deixar a eira ganhar buracos ou fendas, não se podia deixar chegar o tempo de mondar o milho e regar as culturas de verão, se isso acontecesse haveria menos braços para fazer cantar a madeira do mangual na eira, menos braços para atar os molhos, menos vozes para embalar a dança nas noites iluminadas ao luar e com a força de dias estios passados sob o astro que queima e pior ainda, não se podia deixar chegar a chuva. ” Quem malha em Agosto, malha com desgosto”. Haverá outras coisas, de mais gosto, para fazer em Agosto e a malha quer-se acabada antes, por isso a importância destas comunidades.
As tornas eram a cola de localidades que, longe do individualismo, acolhiam as necessidades dos outros como suas. Não se trata de voltarmos a fazer dançar os manguais contra o luar mas sim de descobrir como podemos voltar a ser comunidade e partilhar beijinhos distribuídos por todos os presentes, voltar a ter na vizinhança a afabilidade da família e a segurança de não ter de esperar por Agosto para ‘malhar’ um qualquer problema. Tornar as “Tornas” comuns de torna.
Já o milho vai alto, já deitou bandeira. Já há quem faça figas pelo milho rei na esperança de ganhar um beijinho na eira.